A hemofilia é uma das doenças genéticas mais comuns com uma incidência de 1 em cada 5.000 nascimentos do sexo masculino. Esta doença é caracterizada por uma alteração na coagulação do sangue que é causada por mutações nos genes que codificam fatores de coagulação (um grupo de proteínas que são necessárias para que ocorra a correta coagulação do sangue). O gene anormal produz quantidades insuficientes de fator de coagulação ou produz um fator com função e atividade deficiente, resultando num processo de coagulação do sangue mais demorado ou quase inexistente, o que predispõe o doente para hemorragias graves. Estes genes estão localizados no cromossoma X, sendo as mães portadoras do gene defeituoso e manifestando-se normalmente a doença apenas nos filhos do sexo masculino. Os genes afetados são responsáveis pela obtenção do fator de coagulação VIII na hemofilia A, ou do fator de coagulação IX na hemofilia B, sendo a hemofilia A a forma mais comum desta doença. Atualmente, o tratamento consiste na infusão intravenosa do fator de coagulação em falta logo que se inicie uma hemorragia, não existindo uma cura.
Neste contexto, foram recentemente publicados na revista científica “Cell Stem Cell” os resultados de um estudo em que se demonstrou que foi possível corrigir 2 tipos de mutações associadas à hemofilia A (as mutações estudadas são responsáveis por cerca de metade dos casos graves de hemofilia A) em células iPSCs obtidas a partir de células dos doentes. O estudo demonstrou também que a partir destas iPSCs foi possível obter células com capacidade de produzir o fator de coagulação VIII.
Os investigadores isolaram células da urina de 3 doentes e transformaram-nas em iPSCs. De seguida, através de terapia génica, reverteram as mutações encontradas em cada um dos doentes. As iPSCs com o gene corrigido foram depois diferenciadas em células endoteliais (as células que revestem a parte interna dos vasos sanguíneos, estas células desempenham várias funções, entre as quais, a regulação da coagulação). Para averiguar acerca da funcionalidade das células obtidas, os autores realizaram estudos in vitro (ensaios em laboratório), verificando que as células produziam o fator de coagulação VIII. As células foram depois testadas em modelos de ratinhos com hemofilia A, tendo sido demonstrado que as células revertiam a hemofilia.
Estes são resultados muito positivos, pois demonstram que, no futuro, poderá ser possível tratar a hemofilia através de terapia celular e terapia génica. No entanto, serão necessários mais estudos, quer para se comprovar que este tipo de efeito se consegue reproduzir em humanos quer para se chegar a uma terapêutica que possa ser utilizada em doentes. Os autores sugerem ainda que esta estratégia poderá ser utilizada no tratamento de outras doenças genéticas.
*Induced pluripotent stem cells (iPSCs), células estaminais pluripotentes induzidas, são células estaminais pluripotentes geradas diretamente a partir de células adultas. Esta tecnologia foi desenvolvida no laboratório do investigador Japonês Shinya Yamanaka, demonstrando em 2006 que a introdução de 4 genes específicos converte células adultas em células pluripotentes.[1] Em 2012, juntamente com Sir John Gurdon, Shinya Yamanaka foi galardoado com o prémio Nobel da Medicina.
1-Takahashi, K; Yamanaka, S (2006). “Induction of pluripotent stem cells from mouse embryonic and adult fibroblast cultures by defined factors”. Cell 126 (4): 663–76